terça-feira, outubro 02, 2012

A Pátria Lusitana

"Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta [.].

Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à falsificação, da violência ao roubo, donde provem que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro. Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; este criado de quarto do moderador; e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do País [...].

A justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara ao ponto de fazer dela saca-rolhas.

Dois partidos sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se malgando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar.

[...] Desde a crise do ultimatum inglês, que tanto podia significar uma onda de vida nova como o estertor dum moribundo, resvala a nação, dia a dia, ao letargo estúpido da indiferença. Estará morta? Estará cataléptica? O futuro, breve talvez o vai dizer.

Mas na opinião do mundo, já Portugal não existe. Dura, mas não existe. Dura geograficamente, mas não existe moralmente. A Europa já considera isto uma coisa defunta, espólio a repartir, iguaria a trinchar. Salva-nos da gula dos comensais a rivalidade dos apetites. No dia em que se harmonizem devoram-nos.

Como resistir? Pela força física? Impossível. Não há balas nem libras, não há ouro nem ferro. Qual o meio então? Um único: a força moral. Não vale tudo, mas vale alguma coisa...

[...] Qual era, pois, a grande missão de um governo em Portugal? Fazer de quatro milhões de espíritos um só espírito, juntar quatro milhões de vontades numa só vontade. Porém, os homens que há muito dirigem os destinos da Nação, últimos fantoches do constitucionalismo agonizante, quase sempre democratas vazios aos 20 anos e cínicos redondos aos 40 anos, são incapazes de um plano de governo, gerado numa filosofia superior, amoldado a uma razão prática luminosa e traduzido em factos por uma vontade inabalável e contínua".

Guerra Junqueiro, in "Pátria" (1896)


É confrangedor que 116 anos depois de este texto ser escrito, continuemos no mesmo marasmo e na mesma pendência de sentimentos. Já não é apenas uma questão de forma ou de estilo. Trata-se de sobrevivermos a esta avalancha que nos atira montanha abaixo e que nos irá estatelar diante da nossa embaraçosa impotência.
Vivemos um tempo não só de reflexão, mas também de acção. Não nos podemos resignar como se o nosso próprio destino fosse uma fatalidade que nos transcende. A nossa Pátria Lusitana anda à deriva, anda a saque, e nem a nossa chama de glória poderá ceder ante o poder dos mais fortes. Como diria Guerra Junqueiro, somos uma Pátria de dez milhões de espíritos que têm de juntar a sua vontade numa só vontade. E difundir e partilhar a mais nobre dessas vontades, que é o orgulho imenso de ser português

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